sábado, 27 de agosto de 2011

Os olhos de Fisk sobre a Líbia

A história do Iraque se repetirá na Líbia?

A natureza imprevisível da guerra na Líbia implica que as palavras raramente sobrevivam ao momento em que são escritas. O que Kadafi deverá estar pensando agora? Com sua visão enviesada e astuta do mundo líbio, ele poderia sobreviver para prosseguir um conflito civil-tribal e assim consumir os novos amigos líbios do Ocidente no pântano da guerra de guerrilhas e debilitar pouco a pouco a credibilidade do novo poder. O artigo é de Robert Fisk.

Condenados sempre a travar a guerra passada, voltamos a cometer o mesmo velho pecado na Líbia. Muammar Kadafi desaparece logo depois de prometer lutar até a morte? Não é a mesma coisa que fez Saddam Hussein? Quando Hussein desapareceu e as tropas estadunidenses sofreram suas primeiras baixas ante à insurgência iraquiana, em 2003, foi nos dito – pela boca do pró-cônsul estadunidense Paul Brenner, dos generais, dos diplomatas e dos decadentes especialistas da televisão – que os combatentes da resistência eram fanáticos, desesperados que não se davam conta de que a guerra havia terminado.

E se Kadafi e seu filho sabichão seguem em fuga – e se a violência não termina – quanto tempo vai levar para que outra vez nos apresentem aos desesperados que não entenderam que os rapazes de Bengasi estão no poder agora e que a guerra terminou? De fato, não menos do que 15 minutos – literalmente – depois de ter escrito as palavras acima (às 14 horas de quarta-feira), um repórter da Sky News reinventou a palavra “fanáticos” para definir os homens de Kadafi.

Inútil dizer que tudo é para o bem no melhor dos mundos possíveis, no que diz respeito ao Ocidente. Ninguém descarta o exército líbio e ninguém proscreve os kadafistas de um papel futuro no país. Ninguém cometerá os mesmos erros que cometemos no Iraque. E não há tropas em terra.

Nenhum zumbi encerrado em uma zona verde ocidental, cercada por muralhas, tenta dirigir o futuro da Líbia. “É assunto dos líbios” tornou-se o refrão de toda manifestação do Departamento de Estado/Escritório de Política Exterior/Quai d’Orsay. “Nós não temos nada a ver com isso”.

Mas, desde logo, a presença massiva de diplomatas ocidentais, representantes de magnatas do petróleo, mercenários ocidentais de altos salários e obscuros militares britânicos e francês – todos simulando ser conselheiros e não participantes – conforma a Zona Verde de Bengasi.

Pode ser que não estejam (ainda) rodeados de muralhas, mas o fato é que eles governam por meio dos distintos heróis e pilantras locais que se estabeleceram como senhores políticos. Podemos passar por cima do assassinato de seu próprio comandante – por alguma razão, ninguém menciona mais o nome de Abdul Fatá Yunes, apesar de ele ter sido liquidado há apenas um mês em Bengasi -, mas eles só podem sobreviver se permanecerem com o cordão umbilical preso ao Ocidente.

Esta guerra, é preciso dizer, não é a mesma que nossa perversa invasão do Iraque. A captura de Saddam só levou a resistência a multiplicar os ataques contra as forças ocidentais porque aqueles que, até então, se recusavam a participar da insurgência por medo de que os EUA voltassem a colocar Saddam no governo, perderam essas inibições. Na verdade, a prisão de Kadafi, junto com a de Saif, precipitaria sem dúvida o final da resistência dos seguidores do ditador. O verdadeiro temor do Ocidente neste momento – ainda que isso possa mudar à noite ou amanhã – é a possibilidade de que o autor do Livro Verde tenha conseguido chegar até Sirte, onde a lealdade tribal pode ser mais forte que o medo de uma força líbia respaldada pela OTAN.

Sirte – onde Kadafi, no início de sua ditadura, converteu os campos de petróleo da região no primeiro dividendo internacional para os investidores logo depois de sua revolução de 1969 – não é Tikrit. É a sede da primeira grande conferência da União Africana, a escassos 30 quilômetros da cidade natal de Kadafi: uma cidade e uma região que receberam enormes benefícios de seu governo de 41 anos. Strabo, o geógrafo grego, escreveu que os pontos dos assentamentos no deserto, ao sul de Sirte, converteram a Líbia em uma pele de leopardo. Kadafi deve ter gostado dessa metáfora.
Quase dois mil anos depois, Sirte era o ponto de união entre as colônias italianas de Tripolitania e Cirenaica.

Em Sirte os rebeldes foram derrotados pelas forças leais a Kadafi na guerra de seis meses travada este ano. Sem dúvida, teremos que mudar essas ridículas etiquetas: os que apoiam o pró-Ocidente Conselho Nacional de Transição terão que ser chamados de leais e os rebeldes partidários de Kadafi se tornarão os terroristas que poderão atacar a nossa amiga nova administração líbia. Seja como for, Sirte, cujos habitantes se supõe estejam negociando agora com os inimigos de Kadafi, poderia rapidamente aparecer entre as cidades mais interessantes da Líbia.

O que Kadafi deverá estar pensando agora? Acreditamos que está desesperado, mas, será que está mesmo? No passado, escolhemos muitos adjetivos para qualificá-lo: irascível, demente, perturbado, magnético, incansável, obstinado, estranho, estadista (Jack Straw descreveu-o assim), críptico, exótico, louco, idiossincrático e – em datas mais recentes – tirano, assassino e selvagem. Mas com sua visão enviesada e astuta do mundo líbio, Kadafi poderia sobreviver – para prosseguir um conflito civil-tribal e assim consumir os novos amigos líbios do Ocidente no pântano da guerra de guerrilhas – e debilitar pouco a pouco a credibilidade do novo poder do governo de transição.

A natureza imprevisível da guerra na Líbia implica que as palavras raramente sobrevivam ao momento em que são escritas. Talvez Kadafi esteja escondido em um túnel debaixo do hotel Rixos ou esteja relaxando em uma das casas de campo de Robert Mugabe. Duvido. Enquanto isso, a ninguém ocorre travar a guerra anterior a esta.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Grande Greve Geral no Chile


Chile vive segundo dia da greve geral de trabalhadores
A quinta greve nacional desde o retorno da democracia em 1990 reflete que há algo que resiste à mudança no Chile: a direita que criou o atual modelo econômico, político e social instaurado com a ajuda do ditador Augusto Pinochet nos 17 anos que durou sua ditadura. Mobilização reúne trabalhadores e estudantes: os dois atores que mais perderam com a sociedade de mercado instalada pela direita, aprofundada pelos governos da Concertação entre 1990 e 2010 e radicalizada pelo atual governo. A reportagem é de Christian Palma, direto de Santiago do Chile.

Christian Palma – Correspondente da Carta Maior em Santiago (@chripalma)

A quinta greve nacional desde o retorno da democracia em 1990 reflete que há algo que resiste à mudança no Chile: a direita que criou o atual modelo econômico, político e social instaurado com a ajuda do ditador Augusto Pinochet nos 17 anos que durou sua ditadura.

Na noite de terça-feira, 23 de agosto, na véspera dos dois dias da greve convocada pela Central Unitária de Trabalhadores (CUT), a principal organização sindical do país, que representa cerca de um milhão de trabalhadores, começou a primeira grande manifestação cidadã de rechaço ao governo e ao modelo vigente com um novo e massivo “panelaço”, onde milhões de pessoas saíram de seus lares com suas panelas para protestar simbolicamente – do mesmo modo como faziam contra Pinochet – contra a precariedade dos mais pobres devido ao neoliberalismo extremo chileno.

Esta nova grande ação social desdobrou-se em marchas em vários pontos de Santiago e de outras cidades chilenas, um sinal de apoio às demandas dos trabalhadores e dos estudantes que querem mudar a Constituição Política de 1980, elaborada pelos mesmos personagens que agora governam junto com Sebastian Piñera, o multimilionário presidente do Chile.

Não é para esquecer o fato de que irmão maior do mandatário chileno é José Piñera, o “pai” da legislação atual em matéria trabalhista, mineira e previdenciária que Pinochet aplicou sem consultar a população. A mobilização dos trabalhadores pretende mudar justamente o panorama deixado pelo primogênito dos Piñera, cujo modelo de sociedade enfrenta a resistência dos chilenos que apoiam o movimento dos trabalhadores que continua nesta quinta e ao qual se somaram os estudantes que defendem o fim do lucro na educação pública para que esta seja gratuita.

Trabalhadores e estudantes: os dois atores que mais perderam com a sociedade de mercado instalada pela direita, aprofundada pelos governos da Concertação entre 1990 e 2010 e radicalizada pelo atual governo que insiste em dar enormes subsídios aos bancos privados para créditos universitários, deixando milhões de jovens tão endividados que não conseguem superar esse problema devido aos baixos salários dos mercado de trabalho chileno.

O primeiro dia da greve nacional contou com a adesão de 80% dos trabalhadores públicos, segundo informou a Agrupação dos Empregados Fiscais (ANEF). Milhares de chilenos foram afetados pela paralisação, mas apoiaram a mobilização, saindo às ruas para apoiar os trabalhadores. A paralisação também é uma resposta da CUT à ação do atual governo de sucatear o Estado, demitindo funcionários públicos, flexibilizando a legislação trabalhista, permitindo práticas anti-sindicais e freando a negociação coletiva.

O fato de a paralisação não ter sido tão massiva no setor privado – segundo entidades empresariais, a greve foi inferior a 5% neste setor – deve-se ao fato de que a legislação trabalhista herdada do pinochetismo põe uma série de travas à formação de sindicatos nas empresas, além de permitir a substituição de trabalhadores em greves. Esta é outra das mudanças estruturais defendidas pelo sindicalismo.

A resposta do governo à greve foi a de sempre: deslegitimar os movimentos sociais, assinalando que a greve custará cerca de US$ 400 milhões à economia local. Se consideramos a má distribuição de renda no país, onde 94% da população recebe apenas 6% da riqueza, o resultado real é que a grande maioria dos chilenos só perde US$ 1,5 pela paralisação de atividades.

O pior de tudo é que o presidente Piñera não apresentou nenhum argumento para responder às demandas de mudanças feitas pelos trabalhadores, seguindo o mesmo roteiro executado com os estudantes: realizar outras atividades midiáticas em meio à efervescência social, como almoçar no Palácio La Moneda com os “twiteiros” chilenos mais influentes desta rede social.

Enquanto o governo afirma que a paralisação foi um fracasso, milhares de trabalhadores, estudantes e pessoas comuns saem às ruas para rechaçar o modelo. Também se registraram barricadas de fogo, assim como ocorria nos tempos em que os militares governavam o Chile. As ruas do centro de Santiago ficaram vazias ao entardecer, enquanto começavam os panelaços.

Outro dado a destacar é que, ao contrário das greves realizadas nos 20 anos de governos de centro-esquerda da Concertação, a sociedade chilena aprofundou o descontentamento nas ruas como nunca havia se visto desde 1990. Desta vez, as demandas por melhores salários, menos abusos empresariais e medidas para diminuir a desigualdade de renda são lideradas pela sociedade civil e não pela lógica da elite política.

No Palácio de La Monde os vidros são duplos: o governo não quer escutar o massivo questionamento social ao modelo econômico que a direita insiste em manter.

Nesta quinta, para o segundo dia da greve, espera-se um ato massivo em frente da sede da CUT, que se encontra a menos de 50 metros de La Moneda, em plena Alameda, o que promete uma intensa jornada, repetindo o clima de descontentamento que atingiu o governo de Piñera.

Tradução: Katarina Peixoto

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A lógica do caos


Nossos noticiários econômicos se prendem à divulgação de dados recentes sobre desemprego, inflação, dívida, dow-jones, que hora apontam para recuperação, hora para a catástrofe. Tudo bem, jornalistas têm a tendência de serem dramáticos e a privilegiarem a informação "fresquinha", entretanto isso os distancia do debate histórico e sistêmico. O imediatismo informativo é desculpa para que não discutam, dessa forma, os fundamentos, as ideologias e a transformação da economia mundial. Não se aprofundam nas teorias e no debate de opiniões, em geral sempre interpretando os fatos por meio de uma única ótica. O texto abaixo discute brevemente o futuro econômico sombrio que temos pela frente, e também aponta rapidamente um caminho a ser seguido. Que as forças econômicas do futuro estejam submetidos a uma democracia real.

Sim, pois o meu maior medo é que estes desastres econômicos levem futuramente a mais mentiras, mais guerras e mais mortes.

Paz
Alexei





Theotonio dos Santos

Blog de Theotonio dos Santos

Venho discutindo com Immanuel (Wallerstein) e um grupo de colegas há muitos anos sobre esta situação que prevíamos, baseados não somente nos ciclos longos de Kondratiev. Temos contudo que ter claro alguns pontos que ainda resultam polêmicos, mesmo dentro do nosso grupo de estudiosos do sistema mundial. É necessário destacar duas coisas.

Primeiro, não estamos numa fase desfavorável do ciclo longo, estamos no meio de um período de crescimento. Isto explica que apesar das dimensões colossais da crise da especulação financeira internacional, continua havendo crescimento da economia mundial. Este ciclo positivo deverá esgotar-se em aproximadamente 10 anos quando deveremos substituir o atual padrão tecnológico mundial por um novo paradigma cuja introdução exigirá uma destruição massiva de grande parte da estrutura econômica mundial e das várias estruturas nacionais. Neste momento, a crise atual parecerá uma brincadeira e a idéia de caos que maneja Immanuel se aproximará bastante da realidade deste novo período.

Segundo, a desproporcional intervenção fiscal do governo estadunidense para salvar o sistema financeiro atual é similar à intervenção do Japão no começo da década de 1990 para salvar os absolutamente inúteis bancos japoneses. Ela é pior ainda porque os Estados Unidos, além de transferir recursos colossais para o sistema financeiro quase tão inútil como o japonês, tem gastos insustentáveis como as guerras sucessivas e como as "prevenções" de guerras megalomaníacas que pretendem submeter todo o planeta ao seu domínio.

Logo, os Estados Unidos não podem mais situar-se como o grande "puxador da economia mundial", como vem ocorrendo já nos últimos 10 anos. Deverá ter um crescimento medíocre junto com a Europa. Apesar de que esta poderia ter melhor situação se assumisse seu destino euro-asiático e abrisse suas economias,sociedades e cultura para uma audaz aproximação com a Rússia, a China e a Índia. E ao mesmo tempo, apoiasse o sul da Europa para ligar-se fortemente com a Turquia, com todo o Oriente Médio, a África e a América Latina. Abaixo o Atlantismo que destrói a Europa!

Quanto aos chineses, não têm outro caminho que usar seus dólares e mesmo seus títulos da dívida norteamericana para adquirir empresas em toda a economia ocidental utilizando os fundos soberanos que já têm e os novos que pensam criar. Seu destino é converter-se na principal força econômica ( e financeira) do capitalismo mundial.

Valha capacidade de teoria econômica não ortodoxa para compreender estas realidades e atuar sobre elas. Feliz ou infelizmente o capitalismo de estado da China e de grande parte do chamado Terceiro Mundo deverão dirigir a economia mundial a partir de um período muito curto. Estamos em plena transição para esta nova fase.

Lutemos para que esse capitalismo de Estado esteja submetido a forças democráticas (isto é, as maiorias sociais e não as "elites" antidemocráticas ocidentais, apesar de seus discursos liberais).

Lutemos para encontrar regimes políticos que permitam este diálogo constante entre os Estados e os povos. As formas de representação eleitoral usadas no Ocidente estão em plena degradação com um descontentamento de massas colossal, pois os grandes movimentos de massa do momento não são as rebeliões árabes e sim a ocupação das ruas européias pelos grandes protestos populares.

Não estranhem o fato de que as notícias monitoradas pela grande imprensa internacional não lhes deixem visualizar esta imagem. Há toda uma nova agenda a ser desenvolvida nesta nova situação histórica. A América Latina está fazendo um esforço muito positivo nesta direção. Ela inclui uma drástica reforma dos meios de comunicação e uma maior comunicação Sul/Sul. Temos que pensar com energia, audácia e criatividade. Inmanuel Wallerstein é um dos poucos que está nesta trincheira.

(1) Wallerstein: Se vienen años de incertidumbre y caos mundial

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Distúrbios no mundo "civilizado"

O artigo de hoje é da ativista canadense Naomi Klein, autora de, entre outros filmes, "A doutrina do Choque" (disponibilizei abaixo diretamente do youtube uma versão legendada do filme). Sua tese mais famosa é que governos elitistas e interesseiros aproveitam períodos de crise e de desorientação para empurrar rapidamente medidas anti-populares sobre as pessoas. A linha de argumentação da autora é fundamentada em inúmeros eventos históricos. Precisamos estar atento pois o medo da violência é uma estratégia tradicional para que se roubem os direitos dos cidadãos.

Paz
Alexei



Os saqueadores do dia contra os saqueadores da noite

Claro que os tumultos de rua em Londres não foram protesto político. Mas o pessoal dos saques noturnos com certeza absoluta sabe que suas elites passaram o dia dedicadas aos saques diários. Saques são contagiosos. Alimentados por um sentido patológico de ‘direitos adquiridos’ pelos ricos, o grande saque global está em andamento à luz do dia, como se nada houvesse a esconder. Mas há, sim, temores ocultados. No início de julho, o Wall Street Journal, citando pesquisa recente, noticiava que 94% dos milionários temiam “a violência nas ruas”. O artigo é de Naomi Klein.

Leio comparações entre os tumultos em Londres e em outras cidades europeias – vitrines quebradas em Atenas, carros incendiados em Paris. E há paralelos, sem dúvida: uma fagulha lançada pela violência policial, um geração que se sente esquecida. Esses eventos foram marcados por destruição em massa, com poucos saques.

Mas tem havido saques em massa em anos recentes e acho que temos de falar também deles. Houve em Bagdá, logo depois da invasão norte-americana – um frenesi de destruição e saques que esvaziou bibliotecas e museus. Também em fábricas. Em 2004, visitei uma fábrica de refrigeradores. Os trabalhadores tinham saqueado tudo que havia ali de aproveitável, empilharam e incendiaram. No armazém ainda havia uma escultura gigantesca de placas de metal retorcido.

Naquela ocasião, os noticiários entenderam que teria sido saque altamente político. Diziam que aquilo exatamente seria o que aconteceria sempre que um governo não é considerado legítimo pelos cidadãos. Depois de ter assistido durante tanto tempo ao espetáculo de Saddam e filhos roubarem o que conseguissem e de quem conseguissem roubar, os iraquianos comuns sentir-se-iam, então, merecedores do direito de também roubar um pouco. Mas Londres não é Bagdá e o primeiro-ministro britânico David Cameron não é Saddam. Assim sendo, nada haveria a aprender dos saques em Londres.

Mas há exemplos no mundo democrático. A Argentina, em 2001. A economia em queda livre e milhares de pessoas vivendo em periferias destruídas (que haviam sido prósperas zonas fabris, antes da era neoliberal) invadiram e saquearam supermercados de propriedade de empresas estrangeiras. Saíam empurrando carrinhos abarrotados dos produtos que perderam condições para comprar – roupas, aparelhos eletrônicos, carne. O governo implantou “estado de sítio” para restaurar a ordem; a população não gostou e derrubou o governo.

Na Argentina, o episódio ficou conhecido como El Saqueo – o saque[1]. É exemplo politicamente significativo, porque a palavra aplica-se, na Argentina, também ao que as elites do país fizeram, ao vender patrimônio da nação à guisa de ‘privatizar’, em negócios de corrupção flagrante e enviando para o exterior o produto das ‘privatizações’, para, em seguida, cobrar do povo obediência a um brutal pacote de ‘austeridade’. Os argentinos entenderam que o saque dos supermercados jamais teria acontecido sem o saque anterior, muito maior, do próprio país; e que os reais gângsteres estavam no governo.

Mas a Inglaterra não é a América Latina e, na Inglaterra, não há tumultos políticos – ou, pelo menos, é o que nunca se cansam de repetir. Os jovens que devastaram ruas em Londres são crianças sem lei, que se aproveitam de uma situação, para roubar o que não lhes pertence. E a sociedade britânica, diz-nos Cameron, tem ojeriza a esse tipo de gente mal comportada.

Disse, e com ar sério. Como se os ‘resgates’ massivos dos bancos jamais tivessem acontecido, seguidos imediatamente do pagamento de escandalosos bônus recordes aos altos executivos. Depois, as reuniões de emergência do G-8 e do G-20, mas quais os líderes decidiram, coletivamente, nada fazer para punir os banqueiros por esse ou aquele crime, além de também nada fazer para impedir que crises semelhantes voltem a acontecer. Em vez disso, cada um daqueles líderes nacionais voltou aos seus respectivos países para impor sacrifícios ainda maiores aos mais vulneráveis. Como? A receita é sempre a mesma: despedir trabalhadores do setor público, fazer dos professores bodes expiatórios, cancelar acordos previamente firmados com sindicatos, aumentar as mensalidades escolares, promover rápida privatização de patrimônio público e reduzir aposentadorias e pensões. – Cada um que prepare a mistura específica para o país onde viva. E quem lá está, na televisão, pontificando sobre a necessidade de abrir mãos desses “benefícios”? Os banqueiros e gerentes de empresas de hedge-fund, claro.

É o Saqueo global, tempo de saques imensos! Alimentados por um sentido patológico de ‘direitos adquiridos’ pelos ricos, o grande saque global está em andamento à luz do dia, como se nada houvesse a esconder. Mas há, sim, temores ocultados. No início de julho, o Wall Street Journal, citando pesquisa recente, noticiava que 94% dos milionários temiam “a violência nas ruas”. Aí, afinal, um medo compreensível.

Claro que os tumultos de rua em Londres não foram protesto político. Mas o pessoal dos saques noturnos com certeza absoluta sabe que suas elites passaram o dia dedicadas aos saques diários. Saqueos são contagiosos.

Os Conservadores acertam quando dizem que os tumultos nada têm a ver com os cortes. Mas, sim, têm muito a ver com os cortados que os cortes cortaram. Presos longe, numa subclasse que infla dia a dia e sem as vias de escape que antes havia – um emprego no sindicato, educação barata e de boa qualidade –, eles estão sendo descartados. Os cortes são um sinal: dizem a todos os setores da sociedade que os pobres estão fixados onde estão – como dizem também aos imigrantes e refugiados impedidos de ultrapassar fronteiras nacionais cada dia mais militarizadas e fechadas.

A resposta de David Cameron às agitações de rua é tornar literal e completo o descarte dos mais pobres: fim dos abrigos públicos, ameaças de censura e corte das ferramentas de comunicação social e penas de prisão absolutamente inadmissíveis; uma mulher foi condenada a cinco meses de cadeia, por ter recebido um short roubado [e hoje, 17/8/2011, dois homens foram condenados a quatro anos de prisão, por incitarem tumultos pela internet, apesar de não se ter provado que sua ‘incitação’ levou a alguma consequência (NTs, com informações de Guardian em http://www.guardian.co.uk/uk/2011/aug/17/facebook-cases-criticism-riot-sentences)]. Mais uma vez a mensagem é clara contra os pobres que incomodam: sumam. E sumam em silêncio.

Na reunião “de austeridade” do G-20 em Toronto, os protestos viraram tumultos e vários carros da polícia foram incendiados. Nada que se compare a Londres 2011, mas o suficiente para deixar-nos, os canadenses, muito chocados. A grande discussão naquela ocasião era que o governo havia consumido $675 milhões de dólares na “segurança” da reunião (e ninguém conseguia sequer impedir o incêndio de carros da polícia). Naquele momento, muitos dissemos que o novo e caríssimo novo armamento que a polícia havia comprado – canhões de água, canhões de som, granadas de gás lacrimogêneo e munição revestida de borracha – não havia sido comprado para ser usado contra os manifestantes nas ruas; que, no longo prazo, aquele equipamento seria usado para disciplinar os pobres que, na nova era de ‘austeridade’, seriam empurrados para a perigosa posição de pouco terem a perder.

Isso, precisamente, é o que David Cameron absolutamente não entende: é impossível cortar orçamentos militares ou policiais, no mesmo momento em que você corta todos os gastos públicos. Porque, se o estado rouba os cidadãos, tirando deles o pouco que ainda têm, pensando em proteger os interesses dos que acumulam muito mais do que qualquer ser humano precisa para viver, é claro que deve esperar o troco ou, pelo menos, deve esperar resistência – seja a resistência de protestos organizados, seja a resistência das ondas de saques. Não é propriamente problema político: é problema matemático, físico.

[1] Ver, sobre esse período, Memoria del Saqueo, filme de Fernando “Pino” Solanas, Argentina, 2004. Pode ser baixado de http://docverdade.blogspot.com/2009/03/memorias-do-saque-memoria-del-saqueo.html [NTs].

Fonte:
http://www.thenation.com/article/162809/daylight-robbery-meet-nighttime-robbery?rel=emailNation

Tradução: Coletivo Vila Vudu