Vamos supor que em algum país latino-americano um governo amigável ao mercado, de ideologia empresarial e direitista, fosse vítima de um processo de impeachment em um prazo de 48 horas com direito a 2 horas de defesa, e no lugar dele fosse instalado o seu vice-presidente que, há mais de um ano havia se bandeado para os lados do bolivarianismo. Posso imaginar as ondas de indignação reverberando pela mídia privada desse nosso país, aos berros indignados com a corrupção, o golpismo e o espírito anti-democrático no país vizinho. Pois eis que tudo aconteceu ao contrário esta semana no Paraguay, e, sim, essa mesma mídia, que tantas vezes quer nos ensinar o que é democracia, está exibindo um leque de posicionamentos que vão da resignação calma ao apoio entusiástico.
Mas já que a mídia privada não cumpre o seu papel, cabe aos comentaristas independentes exercerem o tão desejável bom senso que tantas vezes parece faltar ao mundo.
Vamos aos fatos:
1 - O processo de impeachment foi realizado de modo sumário sem ver assegurado o direito à defesa
2 - As acusações são políticas e não jurídicas, e não houve qualquer manifestação popular as apoiando.
3 - Numa democracia quem faz julgamentos políticos é o povo através de eleições.
4 - Os incidentes usados como pretexto para o impeachment ainda estão sendo investigados e não foram apresentadas quaisquer provas para fundamentar as acusações.
5 - Incidentes semelhantes já ocorreram em diversos países, inclusive o Brasil, sem maior consequência politica.
6 - O incidente envolve repressão a camponeses que lutam por reforma agrária num país onde 85% das terras pertence a 2% das pessoas.
7 - Há indícios que os policiais assassinados foram mortos por franco atiradores e não camponeses como se foi declarado
8 - Os políticos beneficiados pelo "impeachment" são os mesmos que dominaram o país durante sua longa ditadura
9 - Os grupos econômicos beneficiados incluem a famigerada mega-empresa Monsanto, cujo desrespeito pela natureza dispensa apresentações.
Tudo isso me leva a concluir que, no paraguai, essa semana, a democracia saiu tristemente derrotada. No
artigo abaixo o comentarista Leonardo Severo aborda graves suspeitas que cercam os acontecimentos usados como
pretexto no golpe e as conexões agro-empresariais estão por trás de tudo.
Paz
Alexei
Leonardo Severo: A desinformação midiática e o golpe da Monsanto
Como as multinacionais e os conglomerados de comunicação atuaram coordenados na derrubada do presidente Fernando Lugo
Por Leonardo Severo*
“A
situação de expectativa gerada pela decisão dos legisladores de
submeter o presidente Fernando Lugo a juízo político foi, finalmente,
resolvida de um modo ordenado, pacífico e respeitoso da legalidade, da
institucionalidade e dos critérios essenciais de equidade que devem
presidir processos tão delicados como o que acaba de ser levado a bom
termo. A destituição do presidente abre fundadas esperanças num futuro
melhor”.
Editorial do jornal ABC Color
“Um presidente sem respaldo, que se
mostra negligente e incapaz, não pode seguir governando. Sem lugar a
dúvidas, o erro mais grave de Fernando Lugo foi o respaldo outorgado a
dirigentes de supostos camponeses que receberam carta branca do governo
para invadir terras, ameaçar e desafiar o Estado de Direito. Lugo
decepcionou a grande maioria da cidadania paraguaia com suas decisões
errôneas, seu sarcasmo, sua desastrosa vida pessoal, sua ambiguidade e
sua crescente amizade com inimigos declarados da democracia, como Hugo
Chávez e os irmãos Castro”.
Editorial do jornal Vanguardia
“Lugo tem princípios populistas (não
necessariamente incendiários). A reputação de honestidade lhe ajudou a
ganhar, porém necessitará um pouco da ajuda do céu para exercer a
Presidência”.
Informação da Embaixada dos EUA, datada de junho de 2008, vazada pelo WikiLeaks, antes da posse de Lugo .
Uma grotesca farsa caiu como raio em céu claro sobre o presidente
constitucional do Paraguai, Fernando Lugo. Em questão de horas o
mandatário teve o seu “impeachment” proposto, analisado e votado pelo
Congresso, mediante um processo metodicamente orquestrado pelas
multinacionais Monsanto e Cargill, a oligarquia latifundiária, as elites
empresariais e sua mídia.
As comemorações estampadas nas capas dos principais jornais paraguaios
dão a dimensão do ódio de classe, com as desclassificadas mentiras
destiladas contra quem se dispôs – ainda que com vacilos e limitações - a
virar a página de abusos e subserviência aos ditames de Washington e
suas empresas.
O cerco midiático contra Lugo vinha se fechando, num país em que 85% das
terras encontram-se nas mãos de 2% da população e onde os mesmos donos
dos três principais jornais, umbilicalmente vinculados às transnacionais
e ao sistema financeiro, também controlam as emissoras de rádio e
televisão. Assim, de forma suja e monocórdica, foram convocadas
manifestações, com bloqueio de estradas, para o próximo dia 25 de junho.
Grandes “tratoraços” em protesto contra a decisão do governo em favor
da saúde da população e da soberania alimentar - de não liberar a
semente de algodão transgênico Bollgard BT, da Monsanto, cuja sequência
genética está mesclada ao gene do Bacillus Thurigensis, bactéria tóxica
que mata algumas pragas de algodão. A decisão, que afetava milionários
interesses da multinacional estadunidense, havia sido comunicada pelo
Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave),
uma vez que a liberação não tinha o parecer do Ministério da Saúde e da
Secretaria do Meio Ambiente.
“A Monsanto, através da UGP, estreitamente ligada ao Grupo Zuccolillo,
que publica o diário ABC Color, se lançou contra a Senave e seu
presidente Miguel Lovera por não ter inscrito a sua semente transgênica
para uso comercial no país”, denuncia o jornalista e pesquisador
paraguaio Idilio Méndez Grimaldi.
Para tirar o Senave do caminho foi alegado o surrado argumento da
“corrupção” no órgão, o mesmo estratagema da máfia de Carlinhos
Cachoeira para tomar de assalto o DNIT e alavancar negociatas, via
utilização de seus vínculos com a revista Veja para denunciar desvios no
órgão – conseguindo inclusive a queda do ministro dos Transportes.
Desta forma, “denúncias” por parte de uma pseudossindicalista do Senave,
Silvia Martínez, ganharam manchetes na mídia canalha. O jornal ABC
Color do dia 7 de junho último acusou o chefe do Senave, Miguel Lovera,
de “corrupção e nepotismo na instituição que dirige”. Mas o fato é que a
pretensa sindicalista advogava em causa própria, do marido e de seus
patrocinadores. Conforme revelou Grimaldi, “Silvia Martínez é esposa de
Roberto Cáceres, representante técnico de várias empresas agrícolas –
todas sócias da UGP (Unión de Grêmios de la Producción) - entre elas
Agrosán, recentemente adquirida pela Syngenta, outra transnacional, por
120 milhões de dólares”.
Algo similar à UDR (União Democrática Ruralista) de Ronaldo Caiado, e
aos ruralistas da senadora Kátia Abreu, a UGP é comandada por Héctor
Cristaldo, sustentado por figuras como Ramón Sánchez – vinculado ao
setor agroquímico - entre outros agentes das transnacionais do
agronegócio. “Cristaldo integra o staff de várias empresas do Grupo
Zuccolillo, cujo principal acionista é Aldo Zuccolillo, diretor
proprietário do jornal ABC Color desde sua fundação sob o regime de
Stroessner, em 1967. Zuccolillo é dirigente da Sociedade Interamericana
de Prensa (SIP)”, esclarece Idílio Grimaldi. O jornalista lembra que o
Grupo Zuccolillo é o principal sócio no Paraguai da Cargill, uma das
maiores transnacionais do agronegócio do mundo. “Tal sociedade”
construiu um dos portos graneleiros mais importantes do Paraguai, o
Porto União, a 500 metros da absorção de água da Companhia de Saneamento
do Estado, sobre o rio Paraguai, sem qualquer restrição”, esclarece.
Com a proteção do apodrecido Congresso que condenou Lugo, as
transnacionais do agronegócio no Paraguai praticamente não pagam
impostos, com uma carga tributária de 13% do PIB, tão insignificante que
acaba inviabilizando os serviços públicos.
Vale lembrar que a saúde e a educação eram totalmente privadas antes da
ascensão de Lugo à Presidência, num país em que os latifundiários não
pagam impostos. O imposto imobiliário representa apenas 0,04% da carga
tributária, uns 5 milhões de dólares - segundo estudo do Banco Mundial –
ainda quando a renda do agronegócio alcance cerca de 6 bilhões de
dólares anuais, em torno de 30% do PIB.
Na sexta-feira, 8 de junho, a UGP publicou no ABC Color seus “12 argumentos para destituir Lovera” . (
http://www.abc.com.py/edicion-impresa/economia/presentan-12-argumentos-para--destituir-a--lovera-411495.html).
Tais "argumentos” foram apresentados ao então vice-presidente da
República, Federico Franco, correligionário do ministro da Agricultura e
pró-Monsanto, recém nomeado “presidente”.
Na sexta-feira, 15, descreve Grimaldi, “em função de uma exposição anual
organizada pelo Ministério de Agricultura e Pecuária, o ministro Enzo
Cardozo deixou escapar um comentário à imprensa: um suposto grupo de
investidores da Índia, do sector agroquímico, cancelou um projeto de
investimentos no Paraguai pela alegada corrupção no Senave. Nunca
esclareceu de que grupo se tratava. Nas mesmas horas daquele dia
ocorriam os trágicos acontecimentos de Curuguaty, onde morreram onze
camponeses e seis policiais”. O sangue derramado foi o pretexto
utilizado pela direita para o impeachment.
Como na Venezuela, franco-atiradores
O que se sabe é que a exemplo da tentativa de golpe de Estado na
Venezuela, onde a CIA utilizou franco-atiradores para assassinar os
manifestantes contrários ao governo para jogar a culpa do massacre sob
os ombros de Hugo Chávez, também em Curuguaty agiram franco-atiradores. E
dos bem profissionais. E movidos pelos mesmos propósitos.
Na região de Curuguaty está localizada a estância de Morombí,
propriedade do latifundiário e grileiro Blas Riquelme, dono de mais de
70 mil hectares. O “terrateniente” é uma das viúvas da ditadura do
general Alfredo Stroessner (1954-1989), um dos principais beneficiados
pela tristemente célebre Operação Condor, desenvolvida pela CIA no Cone
Sul para torturar, assassinar e desaparecer com todo aquele que ousasse
contrariar os interesses estadunidenses na região. Ele também foi
presidente do Partido Colorado por longos anos e senador da República,
sendo igualmente dono de uma rede de supermercados e estabelecimentos
pecuários.
Como Riquelme havia se apropriado mediante subterfúgios legais de
aproximadamente dois mil hectares pertencentes ao Estado paraguaio,
camponeses sem terra ocuparam o local e solicitaram do governo Lugo a
sua desapropriação para fins de reforma agrária. Um juiz e uma promotora
ordenaram a retirada das famílias por meio do Grupo Especial de
Operaciones (GEO) da Polícia Nacional, esquadrão de elite que, em sua
maioria, foi treinado por militares dos EUA na Colômbia, durante o
governo fascista de Álvaro Uribe.
Na avaliação de Grimaldi, que também é membro da Sociedade de Economia
Política do Paraguai (SEPPY), somente uma sabotagem interna dentro dos
quadros da própria inteligência da Polícia, com a cumplicidade da
Promotoria, explicaria a emboscada na qual morreram seis policiais. Uma
ação estrategicamente planejada com um objetivo bem definido. “Não se
compreende como policiais altamente treinados, no marco do Plano
Colômbia, pudessem cair tão facilmente numa suposta armadilha feita por
camponeses, como quer fazer crer a imprensa dominada pela oligarquia. A
tropa reagiu, matando 11 camponeses e deixando cerca de 50 feridos”.
Entre os policiais mortos, ressalta, estava o chefe da GEO, Erven
Lovera, irmão do tenente-coronel Alcides Lovera, chefe da segurança do
presidente. Um recado claro e preciso para Lugo.
A serviço da Monsanto
Conforme o jornalista, no marco da apresentação preparada pelo
Ministério da Agricultura – a serviço dos EUA -, a transnacional
Monsanto anunciou outra variedade de algodão, duplamente transgênico: BT
e RR ou Resistente ao Roundup, herbicida fabricado e patenteado pela
multinacional, que quer a liberação da semente no país.
Para afastar incômodos obstáculos, antes disso o diário ABC Color vinha
denunciando “presumíveis” fatos de corrupção dos ministros do Meio
Ambiente e da Saúde, Oscar Rivas e Esperança Martínez, que também haviam
negado posição favorável à Monsanto.
A multinacional faturou no ano passado, somente com os royalties pelo
uso de sementes transgênicas de soja no Paraguai, 30 milhões de dólares,
livre de impostos, (porque não declara esta parte de sua renda).
“Independente disso, a multinacional também fatura pela venda das
sementes transgênicas. Toda a soja cultivada é transgênica numa extensão
próxima aos três milhões de hectares, numa produção em torno de sete
milhões de toneladas em 2010”, revela Grimaldi.
Por outro lado, acrescenta o jornalista, a Câmara de Deputados já
aprovou projeto de Lei de Biosseguridade, que contempla criar uma
direção de Biossegurança com amplos poderes para a aprovação do cultivo
comercial de todas as sementes transgênicas, sejam elas de soja, milho,
arroz, algodão... Este projeto de lei elimina a atual Comissão de
Biosseguridade, ente colegiado de funcionários técnicos do Estado
paraguaio, visto como entrave aos desígnios da Monsanto.
“Enquanto transcorriam todos esses acontecimentos, a UGP vinha
preparando um ato de protesto nacional contra o governo de Fernando Lugo
para o dia 25 de junho, com máquinas agrícolas fechando parte das
estradas em diferentes pontos do país. Uma das reivindicações do
denominado ‘tratoraço’: a destituição de Miguel Lovera do Senave, assim
como a liberação de todas as sementes transgênicas para cultivo
comercial”.
Dado o golpe, como estamparam os grandes conglomerados de mídia no
Paraguai neste sábado, “a manifestação da UGP foi suspensa”. Afinal, “há
um novo governo, mais sensível ao mercado”.
*Jornalista e escritor, autor de O Latifúndio Midiota